sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Criar, preparar...

Compartilhando com vcs um trecho de Flusser, do capítulo intitulado "Preparar":

"(...) Impõe-se então a seguinte pergunta: afinal de contas, como é que podemos, por entre todos esses acasos que nos cercam, escolher o muito pouco provável?

Já que o impacto dessa pergunta não é óbvio, darei um exemplo.

Costumamos afirmar sem muita hesitação que o "homem primitivo" inventou o fogo. Quando apertados com a pergunta de como tal ato extremamente pouco provável podia ter se dado, costumamos explicá-lo dizendo que o homem tomou um acaso pouco provável (árvores atingidas por relâmpago) como modelo. No entanto, a explicação é ainda mais mirabolante do que o mero ato, porque impõe a pergunta: como é possível que o homem tenha reconhecido no modelo de árvore ardente a virtualidade de cozinhar carne e destarte transformar-se em caçador de renas? Em outros termos: como é possível que o acaso pouco provável "árvore ardente" seja transformado no acaso extremamente improvável "primata carnívoro"? Indubitavelmente, o homem deve ter sido preparado, de alguma maneira, para poder tomar o acaso provável como base do improvável. Bem, essa "preparação" parece miraculosa, e o homem "primitivo", inventor do fogo, da lança, da domesticação de cachorros (para nem falar em imagens, línguas ou danças), parece genial, enquanto nós, em comparação, com todas as nossas imagens sintetizadas, parecemos meros anões"

Flusser, V. O universo das imagens técnicas. São Paulo: Annablume, 2008.